terça-feira, 22 de abril de 2014

A vida, essa estuporada

Se eu quisesse, enlouquecia.
Sei uma quantidade de histórias terríveis.
Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio...
Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso.
Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver?
A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caindo sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo...
Tem de se arrumar muito depressa.
Há felizmente o estilo.
Não calcula o que seja?
Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação.
Faço-me entender?
Não?
Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida.

[Herberto Helder]

1 comentário:

  1. Isto não é um poema!

    Desfizeste a primeira página do livro "Os Passos em Volta"

    peço desculpa, não podia não comentar

    " Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-lo a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?"

    Post Scriptum: Ler poesia na internet nunca será seguro.
    Tudo bem que a obra de Herberto é de difícil acesso, mas Os Passos em Volta, Photomaton & Vox e os livros de Poesia mudada encontram-se reeditados desde Outubro nas livrarias.

    E as bibliotecas harpejam o seu oficio louco nas estantes escuras, à procura de uma mão que queira limpar pó e beijar mar...

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