quarta-feira, 23 de abril de 2014

As quartas

Que é quarta-feira, sim, bem sei.
Mas podia ter outro nome,
porque um dia sem ti
é um dia qualquer,
nem o nome merece.
Acho até que devia haver uma vala comum
para os dias em que te não vejo,
amontoá-los ali ao acaso.
Nem por ordem alfabética, nem afectiva,
nem cronológica sequer,
sextas-feiras com terças,
quintas com sábados,
segundas com... 
(bem, as segundas é outra história)
assim, todos a monte,
que se matassem todos uns aos outros.

Que o calendário, sem ti, seja uma sequência interminável.

- Bom dia, é por causa daquele emprego de...
Ponho sempre o teu nome no currículo,
porque o melhor que fiz fi-lo contigo.
Mesmo quando me desfiz como açúcar no café,
fi-lo bem.
Mas nem assim.
Nem tradutor de silêncios,
nem recorde de asfixia,
nem aquela de fazer da língua um prego
e do amor uma colagem
de sorrisos sem dono.

Há mais amor na traseira da ambulância 
do que na minha memória toda.

Ó quarta-feira, o Outono fica-te largo,
pareces tão mal como um Inverno sem chuva.
Estou a atirar-te o fumo para a cara,
a ver se te vais embora,
se te mudas de lugar,
de dia,
de ano.
Até me dói a boca de te olhar sem os olhos,
de te pensar em Abril,
de te perder até no fundo de um bolso qualquer.

Ficavas tão bem naquele vestido,
que noutra pele qualquer só mesmo por engano.
Eu era outro antes de ti, antes do ódio,
no tempo em que a cor dos meus sonhos
era a cor das tuas calcinhas.
E se não as trazias, meu Deus, as humidades
corriam-me pelas valetas até ao mar. 

Porque eu fui margem,
antes de ti,
antes de ser homem.
Não como agora, que vejo o mar e o renego.
Desconfio mesmo que tiveste orgasmo dentro de água
e cada onda é uma lágrima que perco
por não te chorar como é devido,
assim com epitáfio, mais com rosas brancas.

Porque não te ter é como se tivesses morrido,
por mais que teimes em respirar apenas para me contradizer.
Como sempre.

Quarta-feira, no meio do nada,
nem os mais apaixonados marcam encontro num dia assim.
Existes por puro acaso, tu,
como existe a papiroflexia
ou os jogos de mímica.
Vá lá, vamos chatear o próximo,
eu meto-me ao meio e estorvo.
É isso.
Amanhã nem me lembrarei sequer de ti,
depois disso serás apenas uma metáfora insossa do fracasso.
E ontem, bom, ontem eras o futuro,
cor de cinza, como o céu de Dublin
ou o verso livre de um poeta calvo e com espinhas.

E de todas as mulheres do universo
logo fui assinalar-te a ti,
porque tinhas os olhos mais lindos do mundo
e porque nos olhos tinhas o mundo mais lindo.
E dançámos, bem, eu apenas te seguia os passos,
sem te pisar, ao ritmo das tuas pestanas
e do balanço das barcos ancorados no meu peito,
nessas manhãs em que eu apanhava búzios com os dentes,
para te ver sorrir por trás da sombrinha,
assim mais ou menos, a olhar-te para o decote e a pensar,
então se Deus não existe
este milagre é obra de quem?

Ponho-te, ó quarta-feira, uma rodinha vermelha à volta,
como as viúvas fazem aos aniversários,
és um dia assim como de ir ao dentista,
de ouvir canções pimba na fila do super,
de fumar muito, de fumar de mais,
de putas menstruadas
e de princesas sem coroa.
De enterros e folestrias,
de gorjetas de tostão
e de mentiras eternas.

E depois beijámos-nos à saída daquele bar,
contámos as estrelas num charco,
brincámos às prendas com as árvores,
baptizámos um cão abandonado,
discutimos plurais e verbos irregulares,
tivemos quatro filhos com os teus olhos
sem sequer nos mexermos daquele banco do parque.
E dançámos outra vez debaixo de uma nuvem,
enquanto o futuro nos olhava de viés,
com os dedos manchados de orgasmos
e a roupa assoalhada pelo chão.
Um dia incrível esse, sem dúvida,
quarta-feira sim,
mas não uma quarta qualquer.

[Ernesto Pérez Vallejo]

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