segunda-feira, 21 de abril de 2014

Caminhos do espelho

I
E sobretudo olhar com inocência. Como se não se passasse nada, o que é certo.

II
Mas a ti quero olhar-te até que o teu rosto se afaste do meu medo, como um pássaro do limite afiado da noite.

III
Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho subitamente apagada pela chuva.

IV
Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.

V
Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que o vento abandona na soleira.

VI
Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás e assusta a menina que foste.

VII
A noite dos dois dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos frios.

VIII
E a sede, a minha memória é da sede, eu em baixo, no fundo, no poço, eu bebia, recordo.

IX
Cair como um animal ferido no lugar que seria de revelações.

X
Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Lá dentro o vento. Tudo fechado e o vento lá dentro.

XI
Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras.


XII
Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Há aqui alguém que treme.

XIII
Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem. E o que desejava eu? Desejava um silêncio perfeito.
Por isso falo.

XIV
A noite tem a forma de um grito de lobo.

XV
Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver, fui à procura de quem sou. Peregrina de mim, fui até àquela que dorme num país ao vento.

XVI
Minha queda sem fim minha queda sem fim onde ninguém me esperou pois ao olhar para quem me esperava outra não vi senão a mim mesma.

XVII
Algo caía no silêncio. A minha última palavra foi eu,embora me referisse à aurora luminosa.

XVIII
Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento.

XIX
Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã. Uma mão desata as trevas, arrasta a cabeleira de uma afogada que não pára de caminhar pelo espelho. Voltar à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto, hei-de compreender o que diz a minha voz.

[Alejandra Pizarnik]

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