domingo, 11 de maio de 2014

Longos dias têm cem anos


A solidão, quando é vivida na infância em completa disponibilidade, sem constrangimento, como um estado semelhante ao do primeiro homem e da primeira mulher, tem tendência a tornar-se crónica. Nada mais emocionante do que recriar o tempo infantil da solidão. A biblioteca, com a sua luz vermelha, a poeira que dança num cone de luz, o ruído das madeiras que estalam; o singular prazer de ler Os Miseráveis ou A Dama de Monsoreau, comendo uma maçã ou uma fatia de presunto com pão fresco. O sabor da carne fumada mistura-se ao calor do forno; às vezes até uma brasa apagada cai no dente, como trazida no rescaldo das queimadas. Para mim, o mais belo serão com eruditas sentenças não vale um retiro com algumas iguarias, um pouco de aniz com um romance de Stendhal, e um quarto aqueido com alcatifa vermelha. A solidão sem desprezo, escolha pura, hino do indivíduo, justo himeneu com a sua obra, pequeno reino de poesia de pés curtos, que não anda, não voa, não se ilude com a inspiração sequer.
       Imagino Vieira da Silva neste tipo de solidão. Nada de confidencial, ou dramático. O que em geral se vê nos olhos das pessoas raras é a mais comum das fantasias: estar só e descalçar os sapatos. No limite do seu romance neura e belo como tudo, Anna Karenina disse: «Agora só quero estender um pouco as pernas».

[Agustina Bessa Luís]

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