sábado, 28 de junho de 2014

Quando não vão longe


QUANDO OS SONHOS NÃO VÃO LONGE, correm até à infância e voltam brancos, por grandes alamedas de tristeza e de bruma, a alturas que o olhar não toca, lá onde tu estás e eu não chego. Queria acariciar os teus cabelos mortos, deixar cair entre os nossos espaços o tempo cheio de espaços antes da escuridão acabar de roer a forma da tua sombra.
    Quando há uma cama demasiado larga às cinco e dez da manhã: lágrimas, lágrimas - lágrimas. Quando se ouvem passos e não são os teus passos, quando o silêncio não é a pausa da tua respiração, quando não há essa força e esse fogo, essa paz do corpo que torna invulnerável - oh, é muito simples: o pensamento pára
      tem que parar
             pára
Quando as urtigas nascem por toda a parte, queimam, quando os pântanos alastram e as areias movediças, e a tua mão não está lá, a mão cujos dedos eu conhecia como se conhece um filho, a mão-rocha e a mão-mulher, a mão-sol, a mão-filipêndula batida pelo vento, mas enfrentando-o - é-se como o veado ferido que agoniza em silêncio.
   O que vem depois, vem como o sanfue depois de um corte fundo, não pára, mas falta-nos metade das nossas veias, metade dos nossos nervos, metade da nossa pele esfolada, metade do nosso coração gelado. Estou meio cego, perdi metade da minha idade. Falta a sombra dos teus cabelos, a raiz dos teus dentes, o meu abismo debaixo de água.

[Ernesto Sampaio]

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