domingo, 26 de outubro de 2014

Escolher as verdades com que as nossas vidas se hão-de tocar




[Image taken from page 24 of 'Heavenly Promises. A selection of devotional poetry from the writings 
 of F. W. Faber, George Herbert, John Keble, etc']

Morrendo-se


Éramos jovens: falávamos do âmbarou dos minúsculos veios de sol espessoonde começa o verão; e sabíamoscomo a música sobe às torres do trigo.Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,desatando um a um os nós do silêncio.Pegavas num fruto: eis o espaço ardentede ventre, espaço denso, redondo maduro,dizias; espaço diurno onde o rumordo sangue é um rumor de ave –repara como voa, e poisa nos ombrosda Catarina que não cessam de matar.Sem vocação para a morte, dizíamos.
Também 
ela, também ela a não tinha.
Na planície 
branca era uma fonte:
em si trazia 
um coração
inclinado para a semente do fogo.
Morre-se de ter uns olhos de cristal,morre-se de ter um corpo, quando subitamenteuma bala descobre a juventude da nossa carne,acesa até aos lábios.
Catarina, ou José – o que é um nome?Que nome nos impede de morrer,quando se beija a terra devagarou uma criança trazida pela brisa?

[Eugénio de Andrade]

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Ver essa figura agarrada, em silêncio, à sombra dos meus pecados



[Auguste Rodin]

Mais uma vez deixar as plantas crescer


i remember
how seeing the shape of your mouth
that first time, I kept staring
until my blood turned to rain.

some things take root
in the brain and just don’t
let go.

[t.s. elliot]

Lady Tavistock


Pela casa dos vinte, emprestavas
felizes olhos, os lábios
com a muita estima.
A voz pronta a voar
num assobio deixava
meadas de ar incendiado.

Voltar a ver-te, vou dizer
poucas palavras, estas mãos
indo para não sei onde
murmuram gestos sem recado,
tantos segredos se perdendo então.

[Fernando Luís]

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Entre estar e ser corre um rio de repetições



XXII


A fronte colada aos vidros como quem vela de mágoa
Céu da noite que já ultrapassei
Planícies minúsculas nas minhas mãos abertas
No seu duplo horizonte inerte indiferente
A fronte colada aos vidros como quem vela de mágoa
Procuro-te para além da espera
Para além de mim mesmo
E já não sei de tanto que te amo
Qual de nós está ausente.

[Paul Éluard]

Em dias como este só serve às formas do meu corpo a escuridão, o profundo silêncio,


                                                                                      esse lugar onde não há nada nem ninguém



[Ernst Ludwig Kirchner]

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Descendo este vale, corro para ninguém


Tu estás ao fundo das imagens. És a água silenciosa que bebo, a lentidão dos meses quentes – e mordes o meu coração com a boca de quem ignora tudo.

[Vasco Gato]

Uma contrariedade do vento




[Isobel Campbell & Mark Lanegan - Come Undone]

Mas o arrependimento não é só para velhos


Talvez a juventude seja só este perene
ardor dos sentidos sem arrependimento.

[Sandro Penna]

Depois de algumas pessoas esquecidas, elevam-se as músicas que nos lembram delas, como casas vazias



[gurbir.grewal]

Divisa


Conhecem-me os cavalos e a noite e os desertos
traiçoeiros e a guerra e as feridas e o papel e a pena.

[Herberto Helder]

Maldições




[Rui Pires Cabral]

I wonder how many people I've looked at all my life and never seen



sábado, 18 de outubro de 2014

Descobrir a dupla hélice do teu amor



[Francis Crick & James Watson]



Entre o tigre e o eufrates


Ensinas-me a viver?
Deixo-te pegar na minha colecção de cascas
reparto contigo as unhas que guardo no bolso.
As sementes que nos deram
são pastilhas para dormir
e do umbigo adormecidas
crescem-nos fruteiras.

Dou-te de comer.

Anda.
A terra prometida é para os outros.
Para nós é a areia,
uma paisagem que muda com o vento.

[Miryam Reyes]

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

O importante é não deixar ir, disse-lhe


Porque não soube merecer a glória, a mais suave
de me deitar a teu lado
e que o sangue a palavra 
abolisse a diferença entre o meu corpo e a minha voz
porque te perdi 
não sei quem sou


[António Ramos Rosa]

Nosso querido mês de Agosto


o verão
era uma traição à melancolia

ainda que a luz
trabalhasse no olhar

o cantar das correntes
e a saudade leve dos navios


levava-te sempre no bolso
ruas brancas

e uma mão
de sombras roubadas

era a minha dádiva
nesse tempo de incêndios

[gil t. sousa]

Preciso de ver-te inteiro para que os meus dias não quebrem


Choro quando o sol se põe porque ele te esconde da minha vista e porque não sei entender-me com os seus rivais nocturnos. Embora ele esteja baixo e agora sem febre, é impossível contrariar o seu declínio, suspender a sua desfolhagem, arrancar ainda algum desejo à sua desfolhagem, arrancar ainda algum desejo à sua claridade moribunda. A sua partida funde-te com a sua obscuridade, como a lama do leito se dissolve na água da torrente para além do entulho das margens destruídas. Dureza e moleza de origens diferentes têm então efeitos semelhantes. Cesso de receber o hino da tua palavra; subitamente já não te vejo inteira ao meu lado; não é o fuso nervoso do teu pulso que eu seguro na mão, mas o ramo oco de uma qualquer árvore já morta e gasta. Só se dá nome ao arrepio, e a mais nada. É de noite. Os artifícios que se acendem acham-me cego.
De verdade só chorei uma única vez. O sol ao desaparecer tinha cortado o teu rosto. A tua cabeça rolara na fossa do céu e eu já não acreditava no futuro.
Qual é o homem da manhã e qual o homem das trevas?

[rené char]

Diz-me que leve as palavras menos gastas e que delas faça a fogueira que do frio nos aquecerá




[David Delruelle]

Gritando não por socorro mas por alguém


Dos campos que cultivei duas sementes restaram
O centro
Da pedra e as mãos
Dentro da segunda cultivei a hora de afastar-me
(Não havia ninguém a quem dizer
Já vou)
Dentro da solidão os espantalhos (não lhes fora dada
A companhia dos pássaros)
Abri os braços como as vides nos bardos
Hora após hora (e depois delas) te esperei

[Daniel Faria]

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O silêncio trajado de teu nome


[willy ronis]

O tempo esse grande escultor


«Não irei mais longe, Gherardo.
Não te acompanho mais porque o trabalho urge
e eu sou um homem velho. Sou um homem velho, Gherardo.
Às vezes, quando te entregas mais à ternura,
chegas a chamar-me teu pai. Mas eu não tenho filhos.
Nunca encontrei mulher tão bela como as minhas figuras de pedra,
mulher que ficasse horas imóvel sem falar,
como coisa necessária que não precisa de agir para ser,
e nos faz esquecer que o tempo passa porque está sempre presente.
Mulher que se deixe olhar sem sorrir nem corar
porque compreendeu que a beleza é qualquer coisa de grave.
As mulheres de pedra são mais castas que as outras,
e mais fiéis, porém, são estéreis.
Não há fenda por onde se possa introduzir nelas o prazer,
a morte, ou a semente de uma criança,
e por isso elas são menos frágeis.
Por vezes quebram-se e em cada pedaço de mármore
fica contida a sua beleza inteira, como Deus
que está em todas as coisas,
mas nada de estranho entra nelas que dilate o seu coração.
Os seres imperfeitos agitam-se e acasalam-se para se completarem,
mas as coisas só belas são solitárias como a dor humana.

Gherardo, não tenho filhos.
Eu bem sei que a maioria dos homens não tem propriamente um filho:
têm Tito, ou Caio, ou Pedro, e não é a mesma alegria.
Se eu tivesse um filho,
ele não se havia de parecer com a imagem que eu dele formara
antes de existir. Assim também as estátuas que faço
são diferentes daquelas que comecei por sonhar.
Mas Deus permite-se ser conscientemente criador.
Se fosses meu filho, Gherardo, eu não te amaria mais,
mas não teria que perguntar-me porquê.
Toda a minha vida procurei respostas a perguntas
que talvez não tenham resposta e perscrutei o mármore
como se a verdade se encontrasse no coração das pedras,
e espalhei as cores para pintar muralhas
como se se tratasse de fixar acordes sobre um enorme silêncio.
Tudo se cala, sabes, até a nossa alma —
ou então somos nós que não ouvimos.

Assim, tu partes.
Na minha idade já não se dá importância a uma separação,
mesmo que definitiva. Eu bem sei que os seres que amamos e que nos amam mais
se vão separando insensivelmente de nós a cada momento que passa.
É também deste modo que se vão separando de si próprios.
Estás sentado sobre essa pedra e julgas-te ainda aí,
mas o teu ser, voltado para o futuro, não adere mais ao que foi a tua vida,
e a tua ausência já começou. É certo que compreendo
que tudo isto é ilusão, como o resto, e que o futuro não existe.
Os homens que inventaram o tempo,
inventaram por contraste a eternidade, mas a negação do tempo
é tão vã como ele próprio. Não há nem passado nem futuro
mas apenas uma série de presentes sucessivos,
um caminho perpetuamente destruído e continuado
onde todos vamos avançando.

Estás sentado, Gherardo,
mas os teus pés estão assentes no solo
com a inquietação de quem experimenta o caminho.
Estás vestido com trajes do nosso século,
que hão-de parecer feios ou simplesmente estranhos quando o século
tiver passado pois as vestes não são mais que a caricatura do corpo.
Vejo-te nu. Tenho o dom de ver através das roupas o irradiar do corpo,
que é como os santos vêem as almas, segundo penso.
É um suplício quando são feios,
mas é um outro suplício quando são belos,
dessa beleza frágil que a vida e o tempo atacam por todos os lados
e acabarão por tomar-te,
mas neste momento és dono dela e tua será na abóbada da igreja
onde pintei a tua imagem. Mesmo que um dia
o teu espelho te não mostre mais que um retrato deformado
onde não ouses reconhecer-te, existirá sempre noutro sítio
o reflexo imóvel de ti.
E desse modo imobilizarei a tua alma também.

Tu já não me amas.

Se consentes em ouvir-me durante uma hora
é porque somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar.
Ligaste-me e agora desligas-me.
Não te censuro, Gherardo.
O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido
que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo.
Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces,
ao encontro de quem vais e que porventura te esperam:
aquele que eles vão conhecer será diferente daquele
que eu julguei conhecer e creio amar.
Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e,
sendo a arte a única forma de posse verdadeira,
o que importa é recriar um ser e não prendê-lo.

Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas:
vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los.
Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe,
enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela.
Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo,
assim tu também não és mais para mim
do que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver.


 Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo.
Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.»
 

[Marguerite Yourcenar]

Deixa que te veja a roupa longe, dá-me uma porção da tua pele

 

[Pablo Picasso]



Acima do lugar onde o tempo é um saco de areia


Entra pela boca o vinho,
o amor é pelos olhos,
eis tudo o que sabemos realmente
antes de envelhecer e morrer.
Levo o copo à boca,
olho para ti, e suspiro.
 
[W. B. Yeats]

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

3.


Eu seguro este ramo,
pequeno adorno,
que se desfez ao primeiro olhar,
a penumbra deixa-me ocultado.

Por onde vais
volto num rosto molhado
a seguir o vento, o sul
dos muros onde a teus pés brilha
a serpente e adormece.
Vê, não posso
mentir-te noutro corpo.

[Fernando Luís]

Talvez entendas


Cuidado com as palavras,
mesmo as milagrosas.
Com as milagrosas fazemos o melhor,
apinham-se às vezes como insectos
e não deixam picada mas um beijo.
São tão boas como dedos,
tão de confiança como a pedra
que te serve de assento.
Mas podem ser margaridas e hematomas.

Contudo, estou apaixonada pelas palavras,
são como pombas caindo do tecto,
seis laranjas divinas pousadas no meu colo,
são as árvores, as pernas do verão
e o sol, seu rosto enamorado.

Mas falham-me muitas vezes,
tenho tanto que queria dizer,
tantas histórias, imagens, provérbios.
E não me vêm as palavras certas,
só as erradas, que me dão beijos.
Voo às vezes feita águia,
mas com as asas de um pardal.

Tento, porém, ter cuidado
e tratá-las muito bem.
Palavras e ovos devem manusear-se com cuidado.
Depois de quebradas
não se podem reparar.

[Anne Sexton]

Carta de amor


Um dia destes
vou-te matar
Uma manhã qualquer em que estejas (como de
costume)
a medir o tesão das flores
ali no Jardim de S. Lázaro
um tiro de pistola e ...
Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto
Podes invocar Safo Cavafy ou S. João da Cruz
todos os poetas celestiais
que ninguém te virá acudir
Comprometidos definitivamente os teus planos de
eternidade
Adeus pois mares de Setembro e dunas de Fão
Um dia destes vou-te matar
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração


[Jorge Sousa Braga]

Talvez o que nos espere o tragamos já no espaço entre os dedos



[Bruce Nauman]

Outrando-se e metamorfoses


A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva, etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

[Manoel de Barros]

Na há mão no campo minado que trago comigo


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.


[Eugénio de Andrade]