domingo, 26 de outubro de 2014

Morrendo-se


Éramos jovens: falávamos do âmbarou dos minúsculos veios de sol espessoonde começa o verão; e sabíamoscomo a música sobe às torres do trigo.Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,desatando um a um os nós do silêncio.Pegavas num fruto: eis o espaço ardentede ventre, espaço denso, redondo maduro,dizias; espaço diurno onde o rumordo sangue é um rumor de ave –repara como voa, e poisa nos ombrosda Catarina que não cessam de matar.Sem vocação para a morte, dizíamos.
Também 
ela, também ela a não tinha.
Na planície 
branca era uma fonte:
em si trazia 
um coração
inclinado para a semente do fogo.
Morre-se de ter uns olhos de cristal,morre-se de ter um corpo, quando subitamenteuma bala descobre a juventude da nossa carne,acesa até aos lábios.
Catarina, ou José – o que é um nome?Que nome nos impede de morrer,quando se beija a terra devagarou uma criança trazida pela brisa?

[Eugénio de Andrade]

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