sexta-feira, 24 de abril de 2015

Road and Rocks, ou a passagem do tempo na paisagem


 
[Edward Hopper]

Serei também uma mulher cheia de noite



porque ó velho belo Sigmund Freud a ciência psicanalítica esqueceu algures a chave:
abrir abre-se
mas como fechar a ferida?


a alma sofre sem tréguas, sem piedade, e os maus médicos não restauram a ferida que supura.
o homem está ferido por um golpe que talvez, ou com certeza, foi provocado pela vida que nos dão.
«Mudar a vida» (Marx)
«Mudar o nome» (Rimbaud)


[Alejandra Pizarnik]

A nuvem de calças


Acham que é um delírio de malária?...

Mas isto aconteceu:
aconteceu em Odessa.

Disse Maria: «Virei às quatro.»

Mas deram as oito.
E deram as nove.
E deram as dez.

E a tarde
da janela fugiu
para o noturno horror,
umbroso
e dezembrino.

Nas suas costas caducas riem e galhofam
candelabros.

Ninguém me poderia agora reconhecer:
este gigante musculoso, que geme
e se contorce.
Que pode querer tal colosso?
Mas o colosso que bem quer!

Que importância tem
ser de bronze com o coração de ferro frio!
De noite quero ocultar o meu metal
em algo suave e feminil.

E eis
que desmarcado
me debruço à janela,
fundindo o vidro com a testa.
O amor virá ou não virá?
Será
grande ou pequeno?
Como pode ser grande num brutamontes destes?
Terá de ser pequeno, um amorzito dócil,
que se assusta com as buzinas dos carros
e adora as campainhas dos elétricos.

Cada vez mais
o rosto afundo
no semblante bexigoso da chuva,
e aguardo,
salpicado pela fragor da rua.

A meia-noite, com uma faca,
chegou,
o dia apunhalou
- e pronto!

E caíram as doze badaladas
como do cepo cabeças degoladas.

Nos vidros se juntavam
cínzeas gotas de chuva,
formando uma careta deformada,
uivando quais quimeras
de Notre Dame de Paris.

Maldito!
Não te chega?
Prestes a boca soltará um grito!

Escuto:
silencioso,
como um doente de cama,
ergueu-se um nervo.
Depois caminhou
lentamente,
a seguir correu,
convulsivamente, cauteloso.
Agora, com mais dois,
dança um fandango insano.

Cai no andar de baixo um bocado de estuque.

Os nervos grandes,
pequenos,
muitos!
saltam
como loucos,
e já
estão de pernas cansadas!

E a noite penetra-me no quarto:
não posso abrir os olhos de lodo pesados.

Rangem as portas de repente
como se o hotel
estivesse a bater o dente.
Tu entraste,
brusca como um desafio,
torturando as luvas de camurça,
e disseste:
«Sabes?
Vou-me casar.»

Está bem, casa.
Que queres que faça?
Hei-de me recompor.
Não vês como estou calmo?
Como o meu pulso
parece o dum defunto?

Lembras-te como costumavas dizer:
«Jack London,
dinheiro,
amor,
paixão,» e
eu só te via
a ti Giocconda
pra roubar!

E roubaram por fim.

De novo entrarei no jogo apaixonado,
iluminando a curva do meu cenho.
Então?

Numa casa queimada
às vezes vivem vagabundos sem casa!

Ris-te?
«Tens menos esmeraldas de loucura
do que há copecas no bolso dum mendigo.»
O destino de Pompéia
não olvides
depois de irritarem o Vesúvio!

Eh!
Senhores!
Amantes
de sacrilégios,
crimes
e massacres, vistes
o mais cruel
dos meus rostos
quando
estou
absolutamente calmo?

E sinto
que eu próprio
me sou pouco.
E de mim alguém se tenta rir.

Está?
Quem é?
Mamã?
Mamã!
O teu filho está belamente enfermo!

Mamã!
Tem fogo no coração.
Diga às manas, Liúda e Ólia,
que não tenho para onde ir.
Cada palavra,
mesmo uma graça,
que jorra da minha boca ardente,
salta como uma rameira nua
dum bordel incendiado.

As pessoas fungam:
cheira a queimado.
Chamaram a brigada
cintilante.
De capacete!
Não se pode entrar de botas!
Digam aos bombeiros:
só com carícias se pode apagar um coração a arder.
Eu próprio
deitarei dos olhos catadupas de lágrimas.
Deixem-me descansar.

Salto? Não salto? Salto?
As lágrimas caíram.
Não se pode escapar ao coração!
No rosto ardente,
dos lábios gretados
um beijo carbonizado quer erguer-se.

Mamã!
Cantar não posso.
Na capela do coração já o coro pega fogo.
Em chamas, figuras de cifras e palavras
saltam do crânio
como crianças duma casa a arder,
com o mesmo terror com que se ergueram ao céu
braços acesos no convés do Lusitânia3.
Ante a gente tremendo
no silêncio do lar, um brilho de cem olhos explode do refúgio.
Ó meu último grito, pelo
menos tu
brada que estou a arder pelos séculos fora.
 

[ Vladimir Mayakovsky]