domingo, 25 de setembro de 2016

Amigo Luar: (Ou estar numa cidade que não nos sabe o nome)


Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te ouço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.
[Carlos Oliveira]

domingo, 4 de setembro de 2016

Breve anotação:


Pensais, por acaso, que por crer
na imortalidade,
ela vos será dada?
Ela é obra da fé, do egoísmo,
da desolação.
Se existe, não importa que falte a crença:
respostas ignorantes são as humanas
se a morte interroga.

Andai lá com vossos ritos, oferendas aos deuses,
ou grandes monumentos funerários,
inflamadas preces, cega esperança.
Ou então aceitai o vazio que virá,
onde não há-de soprar sequer um vento estéril.
Aquilo que há-de vir será de todos,
pois não há mérito no nascimento,
nem nada que justifique a morte.

[Francisco Brines]

Haver um lugar entre o amor e a cobardia onde se possa respirar.





[Nobuyoshi Araki]

Eis os que sofrem da terrível era da desabitação


Deveria ser dado que morrêssemos
Com um amor ainda vivo em nós,
Como deveria ser dado a um pássaro
Morrer naturalmente em pleno voo.

[Nuno Rocha Morais]

Mestruation at forty, como ela lhe quis chamar.


I was thinking of a son.
The womb is not a clock
nor a bell tolling,
but in the eleventh month of its life
I feel the November
of the body as well as of the calendar.
In two days it will be my birthday
and as always the earth is done with its harvest.
This time I hunt for death,
the night I lean toward,
the night I want.
Well then—
speak of it!
It was in the womb all along.

I was thinking of a son ...
You! The never acquired,
the never seeded or unfastened,
you of the genitals I feared,
the stalk and the puppy’s breath.
Will I give you my eyes or his?
Will you be the David or the Susan?
(Those two names I picked and listened for.)
Can you be the man your fathers are—
the leg muscles from Michelangelo,
hands from Yugoslavia
somewhere the peasant, Slavic and determined,
somewhere the survivor bulging with life—
and could it still be possible,
all this with Susan’s eyes?

All this without you—
two days gone in blood.
I myself will die without baptism,
a third daughter they didn’t bother.
My death will come on my name day.
What’s wrong with the name day?
It’s only an angel of the sun.
Woman,
weaving a web over your own,
a thin and tangled poison.
Scorpio,
bad spider—
die!

My death from the wrists,
two name tags,
blood worn like a corsage
to bloom
one on the left and one on the right—
It’s a warm room,
the place of the blood.
Leave the door open on its hinges!

Two days for your death
and two days until mine.

Love! That red disease—
year after year, David, you would make me wild!
David! Susan! David! David!
full and disheveled, hissing into the night,
never growing old,
waiting always for you on the porch ...
year after year,
my carrot, my cabbage,
I would have possessed you before all women,
calling your name,
calling you mine. 


[Anne Sexton]

Não consintais que o musgo, o tempo, a sorte/ A memória sepultem do que eu sinto.





[Marquesa de Alorna/Jacques-Henri Lartigue]

sábado, 3 de setembro de 2016

Sobre o peso de um castelo


A minha mágoa é o meu castelo senhorial, que, tal como um ninho de águia, fica bem lá no alto, no cume das montanhas, entre as nuvens. Ninguém pode tomá-lo de assalto. De lá voo, descendo sobre a realidade e apanho a minha presa. Mas não fico lá em baixo – trago a minha presa para casa e essa presa é uma imagem que eu teço nas tapeçarias do meu castelo. Então, vivo como um morto. Tudo aquilo que é vivido mergulho-o no baptismo do esquecimento, para a eternidade da recordação. Todo o finito e casual é esquecido e apagado. Então, fico pensativamente sentado, como um velho homem grisalho, e explico as imagens em voz suave, quase sussurrante, e ao meu lado está sentada uma criança e escuta-me, apesar de se lembrar de tudo antes de eu lho contar.
[S. Kierkegaard]