sábado, 29 de outubro de 2016

O tempo aprazado


Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissémos. Fizémos.
E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.

[Ingeborg Bachmann]

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A flor antes de arrancada


Como a vida sem caderneta
como a folha lisa da janela
como a cadela violeta
- ou a violenta cadela?
Como o estar egípcio e mudado
no salão do navio de espelhos
como o nunca ter embarcado
ou só ter embarcado com velhos
Como ter-te procurado tanto
que haja qualquer coisa quebrada
como percorrer uma estrada
com memórias a cada canto
Como os lábios prendem o copo
como o copo prende a tua mão
como se o nosso louco amor louco
estivesse cheio de razão
E como se a vida fosse o foco
de um baço, lento projector
e nós dois ainda fôssemos pouco
para uma tempestade de côr
Um ao outro nos fôssemos pouco
meu amor meu amor meu amor

[Mário Cesariny]