sábado, 23 de dezembro de 2017

Não se mate


Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.
Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.
O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.
Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
[Carlos Drummond de Andrade]

Eu fiz por dançar no teu compasso; mas perdi-lhe o jeito de tanto empurrão

 
duele pero nos mantiene vivos
que el olor salvaje del recuerdo
muerda de tanto en tanto el corazón
[ Rocío Wittib]

sábado, 16 de dezembro de 2017

I walk a little faster


Falas verdade , amigo Tristão. Sinto como tu que o sortilégio chegou ao fim.
O nosso amor continua, como dizes mais forte que nunca, mas cessou de ser uma coacção mágica, uma força exterior, invencível e fatal. Vamos amar-nos agora como os 
outros homens e as outras mulheres desde que o mundo é mundo; ei-nos restituídos à condição de mortais. Doravante estaremos sujeitos aos caprichos do destino, à flutuação dos nossos desejos a todos os movimentos contrários, a todos os remorsos das nossas vontades. Daí vem que a esta hora, sem cessarmos de nos amar, estaremos a conceber o projecto de nos separarmos.

[Tristão e Isolda]

Desarticular o teu nome que em minha boca é um néctar cheio de veneno

crumbargento:
“A Candle for the Devil - Eugenio Martí - 1973 - Spain
”




De ti tive sempre um lugar onde matar a sede e morrer de sede


Fitei intensamente a lua:
era o teu rosto
na noite do desespero.
de ti tive abundância
em tempo de penúria.
pude viver em graça
no abrigo que me davas.

ai, a saudade dessa estima antiga!
doce era ser sob a tua sombra:
errava no verde prado
perto da fonte de água fresca!

[ibn 'ammâr]

domingo, 10 de dezembro de 2017

Os teus olhos, sempre os teus olhos


I am delicate. You’ve been gone. 
The losing has hurt me some, yet 
I must bend for you. See me arch. I’m turned on.

[Anne Sexton]

Mira que si te quise, fué por el pelo. Ahora que estás pelona, ya no te quiero


Las miro o mejor dicho no las miro porque yo cuando camino no miro nada ni a nadie, sino que las intuyo o las veo de alguna manera, y sólo yo sé cuánto y cómo me fascinan los rostros bellos, y qué culpable me siento, inexplicablemente, de andar con mi ropa vieja, toda yo
desarreglada, despeinada, triste, asexuada, cargada de libros, con mi expresión tensa, dolorida, neurótica, obscura, y mi ropa ambigua, mis zapatos polvorientos, en medio de mujeres como flores, como luces, como ángeles.


[Alejandra Pizarnik]

Where I find you so slowly


I set my love upon you. Much too high.
In the sky   

arrange my burial.

[Marina Tsvetaeva]

Rejoice with those who rejoice, weep with those who weep.

 
[Romans 12:15 - 18 ESV/ John Heywood]




Tenho uma cisma aqui trancada





Esse poema, é sobre o quê?

É sobre os problemas de auto-estima das bonecas insufláveis.
É sobre a vantagem das navalhas em relação às maquinas de barbear.
É sobre os efeitos da nicotina no acasalamento de lagartixas.
É sobre Super Bock, Famous Grouse e, em dias melhores, Glenlivet.
É sobre as ruas de Lisboa quando as acho suficientemente tristes.
É sobre o nada, minha única «matéria».
É sobre tremoços, amendois e Domenico Scarlatti.
É sobre as alterações climatéricas no Bairro da Serafina.
É sobre gatos mortos e outros que ainda não morreram.
É sobre os seios de Jeanne Hébuterne e as mãos de Glenn Glould.
É sobre o bife de lombo à portuguesa do Trivial e os filetes do polvo do Apuradinho.
É sobre política internacional, obviamente.
É sobre a cona da tua mãe, leitor.
É sobre Copenhaga, Barcelona, Paris e Celorico da Beira.
É sobre cáries dentárias, fundamentalmente.
É sobre coisas que preferia ter calado.

[Manuel de Freitas]

Mas o amor, que foi sempre outra coisa, há-de trazer-nos à boca o exacto lugar onde morreremos


não te esqueças de me visitar. traz-me as fotografias de Veneza e aquele poema que me escreveste quando o nosso amor ainda era o que de mais magnífico acontecera nas nossas vidas e no mundo.
havemos de nos sentar nas mesmas cadeiras como se fossem as mesmas manhãs de sábado. havemos de olhar os mesmos telhados, divagar sobre a eternidade dos gestos e jurar comovidamente que as nossas almas se tocaram de uma maneira única e inesquecível.
eu hei-de esconder-te a minha interminável solidão e tu hás-de demonstrar-me, muito inocentemente, nas tuas palavras tão cheias de vida e de juventude, como a morte nos descobre mesmo nos lugares mais altos.

[gil t. sousa]

É dançar, salvar-se? Sim, é dançar de cabeça para baixo

 
[Herberto Helder]





Se me haveis mordido de insaciedade



- Nenhum de vós! Seja qual for o céu
que vos encobre! Seja qual for a Idade
que vos deu! Já nenhum me fascina,
ó seres de pedra e mármore e cristal!
Não estremeço de espanto ou de beleza.
Se tudo o que me coube foi morrer,
espero da Esperança a glória do irreal.

Se vos amo, não sei se vos cantei.
Se vos deifiquei, já vos esqueço.
Se vos medi para além do que vos meço,
para aquém vos deixei.


Como erguer-vos acima dos infernos
de pó e cinza que a paixão criou?
E chamei-lhes eternos!
Que rio de miséria os afogou?

Nenhum de vós! Se estive de joelhos,
hoje levanto o olhar. O que de vós rasteja
sobre a Terra, a podridão do instante,
a perdição dos vícios, a razão de cantar,
está nas palavras presas, nas cadeias
que os séculos soluçam, a arrastar...

Nenhum de vós agora me escraviza.
Tão pequenos, pequenos almocreves!
Crianças das extáticas, divisas
e de infinitos breves!

Nenhum de vós! Não sei que epopeias
e astros e mansões
vos erguestes acima das areias!

Arrepiem-se as trevas e o silêncio
Do desprezo que alargo,
dos nomes que soterro, do amargo
anel de ferro que os recolhe.

Nenhum de vós, nenhum merece
que vos olhe!

Quero os cânticos só para além de mim,
de além dos cataclismos.
De além morte, de além caudais
de mundos em fusão.

Quero ver Deus criar de novo a vida;
uma nova manhã, um sabor novo a relva,
a maresia, à primeira canção...
Os passos do amor na noite fresca,
a primeira e imprecisa solidão.

Quero ver Deus, terrível, frente a frente.
Ver os primeiros lagos, ver os primeiros monstros,
ver-me de onde é que eu vinha.

Quero ver Deus criar de novo a Morte
e que a primeira morte seja a minha.

[Natércia Freire]